A dura vida dos ateus em um Brasil cada vez mais evangélico
Prezada
Eliane,
Bom
dia (ou boa tarde, ou boa noite... Afinal, não sei em que momento você terá
oportunidade de ler minha mensagem).
Peço
licença para invadir sua caixa de e-mails, e espero que meus comentários sejam
recebidos e considerados com a mesma disposição que me conduziu ao escrevê-los.
Pelo
assunto acima descrito, você obviamente sabe que tive a chance de ler seu
artigo a respeito. Muito bom o artigo, por sinal. Mas, não vou ser hipócrita e
dizer que gostei de ler. O artigo está muito bem escrito, e seus comentários
são pertinentes, bem fundamentados e criativos. Contudo, talvez justamente por
fazer sentido, sua constatação me incomoda. Mas eu gostaria de
compartilhar com você mais do que esta constatação da febre denominacional religiosa
sem controle, fanática e irracional. Eu quero (quem sabe) tentar fazer você
perceber que a “coisa não é tão feia quanto você imagina”, e que pode ser vista
sob um outro ângulo.
Vou
te dizer que entendo perfeitamente o seu sentimento. Já estive em situação de
igual desconforto, porém com um preconceito muito mais evidente e bulling
descarado. Sabe quando? Durante toda minha infância, adolescência e parte
da juventude. (Tudo bem que naquela época eu nem sabia o que era bulling.
Risos)
Sou
cristã evangélica de “berço”, e devo te confessar que a vida não era assim tão
fácil – embora eu tenha saudade de alguns aspectos que a caracterizavam.
Ser “crente” na minha época era ser
sacaneado (perdão pelo termo) e discriminado na escola; era ser vítima de
musiquinhas depreciativas que rimassem com palavras chulas e feias e ser
rotulados de “Bíblia” e “pouco inteligente”. E olha que não havia nenhum
movimento, nenhuma conscientização coletiva, nem qualquer tipo de código de Lei
e conduta que nos protegesse ou beneficiasse para que, na possibilidade de uma
denúncia, os “não-Bíblia” se intimidassem. Havia uma premissa evidente de
que éramos desprovidos de cérebro por professarmos uma fé que, na ocasião,
sustentava também um certo padrão de hábitos e comportamentos “caretas”.
Como você pode ver, sei bem como era
dura a vida de um cristão quando o Brasil não era assim tão
“evangélico”, e posso te garantir que não era mesmo nada agradável e bem
menos passível de uma convivência saudável entre desiguais. Era tão
evidentemente discriminativo que eu me recordo de “me envergonhar” de ter que
dizer para uma amiguinha que era “crente”. Ou seja, o que você diz sobre “cada
um professar a fé ou não-fé que quiser” não era sequer passível de discussão.
Mas, por motivos os mais variados, intrigantes e interessantes, isso mudou.
Em
seu artigo, você diz que o seu interesse é tentar compreender como essa porção
cada vez mais numerosa de fiéis está mudando a forma de ver o mundo e de ser
brasileiro. Acho muito positivo o interesse, mas discordo do foco de sua
reflexão. Tentar discutir esta mudança de comportamento perguntando “Por
que os ateus são uma ameaça às novas denominações evangélicas”,
em minha opinião, não é o melhor caminho , nem é uma análise desprovida de
“conflito de interesse”. Talvez fosse mais proveitosa uma abordagem menos
pessoal, o que não desconsideraria em nada muitas das questões levantadas em
seu artigo, como, por exemplo, a igreja como vitrine de consumo, shopping
de fé, etc. Esta é uma “cara” diferente do protestantismo que merece
discussão, até para arriscarmos não só entender como isso influencia o povo,
mas também para tentar – quem sabe - “livrar” alguns um pouco mais esclarecidos
de uma provável “lavagem cerebral” de gente mal intencionada.
Deixe-me colocar um parêntesis aqui:
eu ainda acredito que essas coisas passarão, e que os caráteres se
revelarão, e que os que nisso se envolverem por uma boa causa e um bom coração,
de um jeito ou de outro, sairão ilesos e, ao fim, seja como ou onde for,
todos receberão suas partes neste latifúndio...
Bem,
Eliane, embora não tenhamos afinidade de “fé”, saiba que essas versões
“sem eira nem beira” da religião protestante também muito me
desagradam. Algumas atitudes de seus líderes inclusive ferem bases fundamentais
e primárias do cristianismo a que se dizem seguidores. É realmente um absurdo.
Mas gostaria que você procurasse descobrir outros perfis de cristãos
evangélicos e os considerasse em suas investigações. Pude perceber que você
conhece razoavelmente o perfil sócio-cultural-comportamental deste grupo, o que
demonstra seu grau de competência profissional. Acho isso bárbaro. De verdade.
Por este motivo, achei que valeria a pena te enviar uma mensagem.
Quero
te trazer para o meu ponto de vista dessa mudança no “jeito de ser” da fé no
Brasil.
Como
alguém que foi vítima de preconceito religioso no passado, é claro que eu
prefiro viver num momento do país onde a minha fé é, digamos, “bem vista”. Além
desta, existem outras razões para eu “preferir“ este momento, afinal, eu também
evoluí. As bases em que foram fundamentados meus conceitos religiosos foram
sólidas em seus princípios, mas falhas em seus dogmas e processos. Óbvio. Tudo
que passa pela compreensão do homem está passível de erro. Mas, com o passar dos
anos, o acesso às informações e a curiosidade pessoal, fui descobrindo riquezas
da história e da cultura cristã que não eram sequer consideradas, e detritos
supervalorizados que não fariam a menor diferença se desprezados. Assim,
fui definindo uma opção pessoal da minha prática de fé, e, com outros que
compartilham desta mesma experiência, tenho caminhado. Nesta caminhada, algumas
coisas são inegociáveis, e outras flexíveis a uma nova compreensão. E este é o
meu ponto de vista. O mundo vem mudando, e isso traz vantagens e desvantagens.
Temos que examinar tudo e reter o que for proveitoso. Você bem sabe que
toda transformação no mundo passou por essas aberrações.
Não se deixe surpreender somente por
casos como o das filhas da Baby e do Pepeu Gomes. Permita-se descobrir que, de
repente, eu e você podemos caminhar juntas de verdade, contribuindo com os
nossos conceitos flexíveis para uma vida abundante no real sentido que dela
pudermos extrair como seres pensantes. O taxista não deve ser o seu referencial
único. Convenhamos; às vezes, fica difícil argumentar qualquer tipo de assunto
com determinados “personagens” do dia-a-dia, não é? Há que se relevar, ajustar
o canal, e buscar outras sintonias para a convivência. Isso não acontece só
relacionado a religião.
Te
convido a conhecer muita gente que está disposta a caminhar com ateus. Prometo
não tentar “te converter”( Risos). Mesmo porque, Eliane, se Deus existe
ou não existe, de verdade, não depende em nada do que eu e você pensamos a
respeito! Ele decididamente não deve precisar de nossa opinião para existir.
Obrigada por me “ler”, e parabéns por
seu trabalho.
Um abraço.
Elizabeth Bittencourt de O. Furtado