quarta-feira, maio 26, 2021

Vida Editável e Com Instruções de Uso

 


Tem horas que eu penso que não deve ser novidade pra ninguém o Black Mirror em que vivemos, mas, olhando com mais atenção, lendo, ouvindo e vendo coisas diariamente, eu tenho outra sensação - a sensação de que tem gente que vive num universo paralelo de conceito, valores e comportamento. Não é possível, que, tendo noção exata da realidade, essas pessoas entrem nesse mar de ondas revoltas e se sintam numa ilha paradisíaca, com águas cristalinas e pura bonança! É gente que aprendeu a editar a imagem da vida, gostou da impressão que causa, e se alienou nessa imagem. E, sim, isso se torna um universo paralelo de noção de vida. Aliás, pior, torna-se uma tendência progressiva, que acaba por gerar um modelo, formatando não apenas comportamentos, mas ideias, pensamentos e valores.

Desnecessário dizer que as redes sociais são vitrine desse perfil, até porque as redes são vitrines do mundo. O mundo fora da internet é um mundo que não existe mais. A percepção está invertida. Este mundo - real e não virtualizado - é que virou uma ilusão. E, nele, muita gente segue morrendo de fome, de doenças básicas e que poderiam ser tratadas, de frio, de falta de esperança, de tristeza, sem filtro.

Eu estou no mundo virtual. Tenho um perfil social e profissional, e tento viver antenada para não perder avanços relevantes que possam impactar minha rotina. Mais recentemente, inclusive, me envolvi com o recurso de Lives, e também procuro me beneficiar de novos modelos de trabalho que essa realidade virtual oferece. Sei que existem muitos que fazem o mesmo, e que, apesar dessa vitrine virtual mitomaníaca, conseguem manter um mínimo de sanidade, e, na contramão do falso modernismo, têm sólidos valores e ideais, com os quais se mantém engajados, e usa as redes para estendê-los; mas, ainda assim, me incomoda demasiado observar essa tendência midiática falsificada, porque tem sido uma maioria expressiva, e tem me “avizinhado” muito de perto…

Curiosa e inevitavelmente, essa vitrine padronizada e distorcida atravessa barreiras, e, embora tenha forte concentração na imagem pessoal, tem crescido e conquistado o âmbito profissional, e, obviamente, o político e o religioso - estes com fartura.

Parece que não existe mais um jeito diferente de se pensar e fazer as coisas, um modo alternativo para realizar projetos, ou uma opinião inusitada sobre um ou outro método e conteúdo. Tudo virou remédio. Tudo tem bula, mestres, doutores e especialistas. Temos conhecimento disponível num clique, mas escolhemos copiar e seguir o “passo a passo” e, depois, criar a própria bula para o passo a passo que seguimos, e por aí vai. Não vai sobrar um leigo sequer nesse mundo!

Mas eu ainda vejo isso como um universo paralelo possível de ser desativado, ou mantido em modo silencioso. Como? Ainda não sei, mas sei que deve ser lento, preciso e constante; e que isso tem a ver com não nos deixarmos afetar, nem calar, ou se abater. O tal silêncio dos bons, que já incomodava o perseverante Luther King, não pode seguir existindo.

Historicamente, as novidades sempre chegam, evoluções aparecem, transformações acontecem. Isso é parte do processo. Contudo, chega a hora em que essas coisas precisam ser filtradas, ou passadas por uma peneira de valor e sentido maior, para prosseguirmos impactados - talvez não ilesos, mas recuperados, curados, e amadurecidos como frutos saudáveis da árvore da vida.

Os olhos são a vitrine da alma. E isso, numa realidade empírica de vida transcendente, nunca vai mudar.
Ser fake é mais que uma opção, é um cárcere de consciência.

 


quarta-feira, maio 12, 2021

Onde Você se Reconhece?


Não sei exatamente quando o espelho passou a fazer parte da vida da humanidade, talvez em histórias como das bruxas dos contos de fadas, sei lá; mas no momento em que isto aconteceu, este simples objeto adquiriu proporções que ultrapassam a futilidade.


Lembram da lenda de Narciso?  Conta a lenda que Narciso era um jovem de singular beleza. No dia de seu nascimento, um adivinho profetizou que ele teria vida longa desde que jamais contemplasse a própria figura. Mas seu egoísmo provocou o castigo dos deuses. Ao observar o reflexo de seu rosto nas águas de uma fonte, apaixonou-se pela própria imagem e ficou a contemplá-la até consumir-se. Dizem que no lugar onde ele morreu, nasceu uma flor, que ficou conhecida pelo seu nome: Narciso. Na psicanálise, o termo narcisismo designa a condição mórbida do indivíduo que tem interesse exagerado pelo próprio corpo.


O tempo passou, o mundo mudou, e aqui estamos nós, numa complexa relação com o tal espelho. E esta complexidade não se restringe ao físico, à cultura do corpo e suas exigências. Acho que inconscientemente, vivemos alguns conflitos também com um suposto espelho que projeta o invisível de nossa intimidade, nossas frustrações, medos, como se ele nos colocasse frente a frente com o irreversível do que nos tornamos ao longo dos anos.


É complicado enxergar-se e reconhecer-se, sem de fato, compreender-se e admirar-se.

Se projetamos nossa imagem e a definimos a partir das relações com as pessoas e circunstâncias, estes (as pessoas e as circunstâncias) supostamente tornam-se nossos espelhos, e nós, espelho dos outros. Pense bem: Nesses relacionamentos espelhados, nos mais variados sentidos, há que se considerar as possíveis distorções, exageros, supervalorizações. Qualquer imagem sofre variações quando passa pelo outro, pelas coisas, e provavelmente comprometerão a reprodução do nosso “eu”. A visão mais confiável seria, então, aquela que não se projeta, mas que se revela na viagem ao centro de si mesmo.


Nossa vida não foi um acidente, por isso, somos mais do que o que nos mostra qualquer conceito de espelho.

É bom ter consciência dos caminhos por onde já passamos, onde estamos, e até onde pretendemos ir; sentir prazer e ver sentido em cada uma dessas etapas. Saber que o centro do universo não mora no nosso “umbigo” e que a vida e seus reflexos não se limitam a nós.  Se conseguirmos considerar assim,  nossa imagem passa a ser refletida com inteireza, numa constante possibilidade de ver-se, rever-se, reverenciar-se e aperfeiçoar-se; sem  soberba, e sem desprezo, apenas reconhecendo limitações naturais, na paz de amar a si mesma e, assim, ser capaz de amar de verdade o outro.


Envelhecer é diferente de apodrecer

Qual seria a sua idade se você não soubesse quantos anos você tem? (Confúcio) Eu, com certeza, seria velha, em qualquer momento. Devo ter na...