Para situar vocês, leitores, devo dizer
que tenho berço cristão, evangélico. Mas já adianto que na minha época
ser "crente" não era modismo, e não tinha visibilidade em
mídias.
Vivi minha infância, adolescência e
parte da juventude num ambiente religioso, e boa parte desta época,
estive submetida a doutrinas comportamentais rígidas, que me constrangiam, e
tornavam meu temperamento extrovertido e questionador um problema. Para mim,
sempre foi muito difícil seguir algo que não entendesse; por isso mesmo,
comecei ler e estudar a bíblia bem cedo, ainda na adolescência.
Aproveitei que a igreja incentivava a atividade, e me dediquei com afinco. As
dúvidas eram milhares, e os encantamentos idem.
Pra mim, a noção de um Deus nunca foi
questionável do ponto de vista de sua existência, isso sempre foi muito
tranquilo, e segue sendo até hoje. Mas os cenários, a cultura, as simbologias,
as personagens, a variedade de interpretações, etc, isso era
questionável, e esses questionamentos me angustiavam profundamente,
principalmente pelo fato do tema me ser tão caro, por eu ter uma vontade
sincera e intensa de oferecer o que havia de mais genuíno em mim, sentir que
meu coração ardia pelas questões espirituais, me emocionar, e não
me sentir parte, não me identificar como gostaria.
Eu não sei dizer precisamente em que
momento a igreja evangélica mudou. Ou melhor: A igreja não mudou. Acho
que lentamente algumas instituições e líderes foram se popularizando,
flexibilizando suas doutrinas rígidas, outros foram aderindo à moda,
e foi ficando fácil pertencer. Eu não acompanhei de perto esse
processo “evolutivo”, pois, num dado momento, antes disso, eu já não
estava mais conectada como membro ativo daquela comunidade de fé.
Muita coisa aconteceu na minha vida
pessoal: Faculdade, um casamento precoce (com o primeiro e único namorado) se
desfez, descobertas de traições de vários tipos, mudanças radicais de postura,
e uma nova busca por entendimento de vida e noção das coisas. Lá estava
eu. Aproveitei que a terra estava toda remexida debaixo dos meus pés, e
fechei um “pacote” com Papai do Céu: Eu não o largaria por nada nesse
mundo, mas eu queria poder ser quem eu realmente era. Transparente, com
dúvidas e certezas (poucas), disposta a novos aprendizados, conhecer e se
dar a conhecer, e chegar o mais próximo que pudesse da Sua essência.
Nosso pacote considerou meus erros e o seu perdão, seus desígnios e
minhas muitas dificuldades de entender alguns deles. Mas prosseguimos,
sempre juntos. E, olha… Ele nunca me deixou… (esta é a parte em que eu
choro!)
O
pacote segue vigente, e continuo meu aprendizado diário.
Voltando
à Bíblia.
Desde a primeira vez que me propus a
estudar, até os dias atuais, minha leitura nunca foi única, nem isolada.
E isso sempre me fez muito bem. Eu fui mudando, amadurecendo, descobrindo novos
estudos das literaturas e das teorias de mundo, sociedade, raça humana;
lendo e interagindo com outras propostas reflexivas, e sempre incorporando um
novo olhar sobre o panorama histórico-cultural da Bíblia. Nada, neste meu
exercício de conhecimento, me roubou a fé, nem diminuiu Deus, muito pelo
contrário.
“Agora vemos apenas um reflexo
obscuro, como num espelho; mas, então, veremos face a face. Agora,
conheço em parte, então, conhecerei plenamente, da mesma forma como sou
conhecido.” (Carta do Apóstolo Paulo aos Coríntios, cap 13, vs
12) Desde que entendi este trecho, percebi que minhas incertezas
seriam frequentes.
A Bíblia é, sem dúvida, uma obra
fascinante, fruto de muita dedicação e trabalho minucioso de especialistas, e
traz até nós uma história preciosa e poderosa da revelação de Deus: o AMOR,
neste caso, feita na figura de Jesus Cristo.
Sei bem que são poucos os humanamente
privilegiados, com acesso à leitura, ao estudo, e conhecimento mais
profundo da Bíblia como literatura. E, obviamente, não amarro esta
condição à fé de ninguém, e nem à ação divina. Deus vai muito além da nossa
intelectualidade.
Aqui,
eu talvez consiga conectar meu raciocínio às recentes ocorrências
envolvendo evangélicos famosos, como, por exemplo, a Ana Paula
Valadão.
Dentre os poucos privilegiados, eu
arriscaria dizer que Ana Paula Valadão é uma pessoa com o excelente acesso à
informação, estudo e conhecimento de modo geral. Então, não me sinto
expondo fragilidade de ninguém.
Quero começar dizendo que não a
recrimino pelo entendimento de fé que adquiriu, muito menos por suas
experiências pessoais com esta fé. Olhando de longe sua caminhada, vejo
conquistas, e também identifico avanços significativos no uso de recursos
- didáticos e de infraestrutura - para fazer sua missão evangelística
alcançar e transformar vidas. Os projetos primários do Diante do Trono,
os investimentos, as oportunidades de emprego e voluntariado, e por aí
vai… Na minha opinião, isso é muito positivo. Só não consigo associar esta gama
de conhecimento e recursos com tanto engessamento cognitivo e falta de sabedoria na manifestação do
amor do Cristo. A conta não fecha. Pergunto-me se ela perdeu a mão
em algum momento, se preferiu não transcender em conhecimento para investir num
império “business-Gospel”, ou se é uma questão de limitação mesmo. Na
minha cabeça, parece um desperdício ( porque escolhi não considerar má
fé).
Seus posicionamentos recentes me fazem pensar o
seguinte:
a)
Falta um mínimo de empatia!
É mais ou menos como estar diante de uma pessoa com
câncer terminal, sorrir, e dizer: “Olha, eu vim aqui dizer que Jesus te
ama, mas tenho que te lembrar que o salário do pecado é a morte,
portanto, muito provavelmente, isso tudo que está te acontecendo tem a ver com
coisas erradas que você fez”;
b)
É uma prática religiosa que escolhe pecados.
Evita-se
jogar luz em questões culturais relacionadas à evidente promiscuidade dos reis
com suas muitas concubinas, em prováveis relacionamentos incestuosos pós
criação do mundo, em crimes de guerra em nome de Deus, no sacrifício das
doutrinas de restrições alimentares; e até flexibiliza-se o divórcio
(antes tão maldito, mas que já foi contemporizado), mas sustenta-se que existe
uma operação diabólica na homossexualidade, ou seja, legisla-se em
nome de seus próprios preconceitos e dificuldade de entendimento, pois, a
grande verdade é que a grande maioria de nós desconhece totalmente os conflitos
íntimos de alguém que vive esta crise de identidade;
c)
Desperdiça-se a potencialidade, transcendência e magnitude de Deus Coloca
Deus na caixinha do seu próprio entendimento, e navega por um mar de águas
paradas, onde nada muda nunca, nem a maré;
d)
Não se contextualiza a mensagem do Evangelho.
A personagem de Jesus Cristo, sua mensagem,
sua experiência humana, a proporção de sua interferência na história,
tudo mantém-se arraigado unicamente a leis e profecias do Antigo
Testamento. Isso é desprezar a história e sua continuidade, as
circunstâncias, as épocas, e repetir uma noção de fé estática no
tempo. Qualquer um que resume um compêndio bíblico num livro de
prática religiosa única e com verdades absolutas imutáveis não está
sensível ao sentido de vida e ao tamanho de Deus.
Quero deixar aqui registrado que não
estou associando o entendimento bíblico filosófico à fé de ninguém. Pra
mim, são coisas que não precisam estar necessariamente atreladas. Conheço
pessoas humildes, que nunca tiveram oportunidade sequer de serem alfabetizadas,
que vivem uma fé gigante, e que são sensíveis e usadas por Deus; muitas
seguem suas restrições doutrinárias, e o fazem de forma genuína. Seria
crueldade minha julgá-las, e obviamente um Deus que é amor em essência enxerga
isso melhor que eu.
A questão que trago nos meus
comentários tem a ver com a manipulação do conteúdo bíblico de modo
insensato e até leviano. Por trás de aparência de santidade, há atitude
presunçosa e ambição de celebridade. E, no alastramento desses perfis,
tudo vai se confundindo, e a essência vai se perdendo.
Sobre a Ana Paula (e com ela muitos
outros), até um tempo atrás, eu só “lamentava”, mas, ultimamente, tenho
me incomodado bastante. Não que eu já tenha compreendido toda a inteireza
bíblica, nem que tenha todas as respostas sobre vida espiritual, mas a minha
fé se fundamenta numa experiência transcendente com um Deus que é
essencialmente fonte de vida e amor, e Ele não cabe inteiro em uma
religião. Eu o reconheço quando o “sinto", é como se dentro em mim
algo o identificasse (tipo o Espírito Santo, sabe? ), e me ajudasse a discernir
a linhagem espiritual diante de mim. Não quero parecer pretensiosa falando
assim, mas essa foi uma descoberta empírica em minha vida, e cansei de
negligenciá-la, enquanto tantos absurdos são falados e feitos por aí em nome de
Deus, sem qualquer pudor.
E, neste sentir, devo dizer que:
Não ouço Deus na voz de gente que fala
sobre dores que não são suas com autoridade de quem leiloa o céu. Não
sinto Deus em quem não chora com os que choram, gente que se importa e
privilegia credo, cor, gênero, orientação, status; e também não vejo Deus em
quem mistura e compromete fé com “politicagens”, e usa a religião em benefício
próprio - alguns até para camuflar seus delitos e perversidades. Gente que
grita textos bíblicos como jargões de guerra, desprezando a beleza e o valor de
sua simbologia.
A voz de Deus é como uma brisa suave,
que sopra sobre todos, e que se encarnou na figura de Jesus para revelar sua
essência de amor, para que todos os sedentos e famintos pudessem ser saciados,
e colocou em cada um de nós o seu Espírito, para que pudéssemos ser também
sua voz, socorro, alimento, aconchego; pois nele somos um, parte do mesmo
TODO, que é fonte de vida, paz, justiça e amor.
Lamento e me incomodo muito com Anas, Flordelises,
Macedos, Malafaias (a lista é enorme), mas também me incomodo com os ordinários
desconhecidos do dia a dia, que preferem o comodismo do seu silêncio do que o
confronto das pequenas lutas diárias por um discurso mais transparente, para não
comprometer suas mordomias privilegiadas, nem as riquezas mal distribuidas no
mundo, inclusive em nome de uma teologia de prosperidade criada pra sua
vaidade!
Sei, na minha pele, que muitos se calam sim por
comodidade e oportunismo. Como citei no início do texto, eu questionava e
buscava entender coisas simples que, hoje em dia, depois de toda a
customização da fé, a galera evangélica usufrui na boa, e que, na época,
eu não tive um eco sequer. Aí, você pode me dizer: “Que bom que pelo
menos mudou!”, eu digo que não celebro coisas conquistadas por modismos; eu
celebro vitórias de esforços dignos, lógicos e devidamente assimilados.
Minha fé não é inabalável porque não
muda, ela muda sim, mas não se desfaz; se ressignifica na renovação do meu
entendimento, conforme vou vivendo, experimentando novos desafios e
amadurecendo.
É mais ou menos isso que eu esperaria
de uma mulher culta, líder religiosa, que sabe inclusive distinguir uma bota
Piton de outra qualquer - que sua visão de fé e espiritualidade acompanhasse o
restante do seu desenvolvimento e investimento.
Desculpem o textão de desabafo, mas é
inominável gente que para no tempo só para o que lhe convém, e segue fazendo
discípulos, e machucando pessoas.
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